Global Journal of Human Social Science, G: Linguistics and Education, Volume 25 Issue 3

estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som [...]” (GEERTZ, 1989, p. 7 – grifo nosso). O conceito de Geertz ilumina com precisão o tipo de escrita construída por Itamar Vieira Junior em Torto Arado , uma obra que recusa a linearidade da história oficial e aposta na fragmentação, na oralidade, na espiritualidade e na materialidade dos corpos como fontes legítimas de conhecimento. Assim como o manuscrito descrito por Geertz, a narrativa do romance exige um leitor capaz de ler nas entrelinhas, de decifrar silêncios, de captar memórias subterrâneas e gestos esquecidos — aquilo que Lélia Gonzalez chama de escuta das vozes amefricanas. Nesse sentido, a obra não apenas tematiza práticas etnográficas, mas encarna uma forma de etnografia literária que traduz, sem domesticar, os saberes das comunidades negras rurais brasileiras, resgatando histórias que foram historicamente desbotadas ou distorcidas pelos registros oficiais da modernidade colonial. Em chave decolonial, especialmente ao abordar a figura de Santa Rita Pescadeira e sua presença espiritual na vida do povo de Água Negra, trata-se aqui de uma etnografia amefricana (Gonzalez, 1984) 1 Em Torto Arado, o autor constrói sua narrativa articulando dimensões geográficas, históricas, sociais, econômicas, políticas, religiosas e antropológicas. A literatura torna-se aqui etnoliteratura, e seus personagens — especialmente Belonísia, Bibiana e Santa Rita Pescadeira — atuam como narradoras e informantes, traduzindo experiências e cosmologias locais. Contudo, essas vozes não atuam isoladamente: há no romance o fenômeno da polifonia, em que múltiplas vozes e perspectivas convivem, tensionam e se entrelaçam. Tudo no texto é compreendido a partir de quem informa. O autor, Itamar Vieira Junior, nesse contexto, atua menos como o "nativo" e mais como um , como anteriormente foi mencionado, porque refere-se a uma etnografia que ouve o corpo, os silêncios, os gestos e as memórias coletivas, e não apenas os discursos formais, eurocentrados, historicamente impostos aos povos colonizados e racializados. 1 No ensaio “Racismo e sexismo na cultura brasileira” (1984), Lélia Gonzalez desmonta a ideia de que a cultura nacional é mestiça, harmônica e democrática. Ao contrário, ela mostra que a brasilidade é marcada por um racismo estrutural e um sexismo fundacional, que operam tanto no cotidiano quanto nas instituições — especialmente sobre os corpos negros e, em particular, das mulheres negras. Nesse contexto, Gonzalez constrói uma crítica profunda ao modo como os saberes e as práticas dos povos afrodescendentes foram invisibilizados, exotizados ou apropriados pela cultura hegemônica branca, inclusive dentro da academia. É justamente aí que sua reflexão se cruza com a etnografia: ela propõe um reposicionamento radical da escuta etnográfica, que vá além da descrição do “outro exótico” e se comprometa com uma escuta sensível, crítica e politicamente implicada. etnógrafo-tradutor, responsável por transformar essas vozes e experiências em narrativa literária, sem silenciá- las nem substituí-las. De forma abreviada, nesses primeiros comentários, a ideia é propor a construção de um olhar forjado a partir do que chamamos de uma encruzilhada mítica, política e poética de modo a reconhecer Torto Arado não apenas como uma obra literária de grande valor estético, mas como um artefato cultural que tensiona as fronteiras entre literatura, etnografia e crítica social. A escrita de Itamar Vieira Júnior desloca o olhar do centro para as margens, revalorizando epistemes silenciadas pela colonialidade do saber e do poder. Ao assumir o papel de etnógrafo-tradutor, o autor constrói um projeto narrativo que se compromete com a escuta dos sujeitos historicamente subalternizados — em especial, das mulheres negras do sertão — fazendo da literatura um espaço de testemunho, denúncia e resistência. Essa escolha estilística e ética reposiciona o papel do escritor enquanto agente de memória e de tradução cultural, reafirmando que toda criação literária, ainda que ficcional, carrega em si marcas do vivido, do coletivo e do político. Assim, Torto Arado se configura como um texto que, ao mesmo tempo em que narra, interpreta e dá a ver, também convoca à escuta — não apenas das palavras ditas, mas dos silêncios herdados, dos corpos marcados e das histórias que insistem em resistir. Logo, as próximas reflexões e apontamentos buscam elucidar a partir de um aporte teórico fértil, um discussão que parte da hipótese de que Torto Arado pode ser lido como uma forma de escrita etnográfica, na medida em que reconstitui mundos culturais a partir da escuta sensível e do convívio com as comunidades retratadas. A escrita de Itamar se inscreve numa encruzilhada entre mito, política e poesia — o que chamaremos aqui de uma encruzilhada mítica, política e poética. Notas sobre o autor – Itamar Vieira Júnior - etnógrafo- tradutor e a recepção de Torto Arado enquanto obra literária no mundo e no Brasil. O geografo, funcionário público do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a mais de 10 anos e escritor, Itamar Vieira Junior, teve, dentre outras inspirações para escrever o Romance Torto Arado (2019), contato com comunidades quilombolas da Bahia e nesse sentido, o que nos interessa não é só o resultado metafisico, mas científico social construído pelo autor, o seu texto. Dentre outras referências e dados secundários, cientes de que as primeiras linhas da obra foram escritas na adolescência do autor, mas é na sua tese de doutorado - Trabalhar é tá na luta: vida, morada e movimento entre o povo Iuna (2017) – que é possível encontrar particularidades sobre os ritos do Jarê, The Mythical, Political, and Poetic Crossroads: The Ethnographic Writing of Itamar Vieira Junior in Torto Arado Global Journal of Human-Social Science ( G ) XXV Issue III Version I Year 2025 38 © 2025 Global Journals

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