Global Journal of Human Social Science, G: Linguistics and Education, Volume 25 Issue 3

É sobre o conjunto das situações sociais e particularidades de Água Negra que o leitor é informado a partir de ‘Fio de Corte’ (capítulo 1), que selecionada pelo escritor, uma nativa com um pouco mais de 7 anos, Bibiana, protagoniza uma situação e é capaz de narrar sobre a mesma. Fenômeno que vai se repetir nos outros dois capítulos de Torto Arado (2019). Respondendo assim a primeira questão sobre as mesmas serem primeiro protagonistas e posteriormente narradoras do que vivenciaram em suas situações sociais. Em ‘Fio de Corte’, na primeira pessoa do singular, as primeiras linhas do texto são iniciadas por uma descrição de fatos em que a posição de quem informa, revela, além de seu ponto de vista, a sua identidade e o que se vivenciou, conforme fragmento abaixo: quando retirei a faca da mala de roupas, embrulhada em um pedaço de tecido antigo e encardido, com nódoas escuras e um nó no meio, tinha pouco mais de sete anos. Minha irmã, Belonísia, que estava comigo, era mais nova um ano. Pouco antes daquele evento estávamos no terreiro da casa antiga, brincando com bonecas feitas de espigas de milho colhidas na semana anterior. Aproveitávamos as palhas que já amarelavam para vestir feito roupas nos sabugos. Falávamos que as bonecas eram nossas filhas, filhas de Bibiana e Belonísia. (Vieira Júnior, 2019, p. 9). Na sistematização da narrativa (Benjamin, 1985), demonstrada em Torto Arado (2019), uma criança de um pouco mais de 7 anos, Bibiana, informa, e não um narrador onisciente, que estava com sua irmã, um ano mais nova (6 anos), Belonísia, quando retirou uma faca da mala de roupas, dentre outras particularidades da situação. Isto é, ela se identifica e nos fala sobre si mesma, sobre elas e sobre detalhes do que experienciaram. Em suma, na ausência do narrador onisciente no romance em tela, é possível identificar o que refletimos, à luz de Nesimi (2019) e Peirano (2014), isto é, o escritor, assim como o etnógrafo, possuem vista privilegiada e poder de escolha para selecionar os informantes. A segunda questão que levantamos: qual a diferença entre ser uma nativa do jarê e uma nativa de Água Negra praticante do jarê?, para essa resposta transcrevemos da obra os seguintes fragmentos que poderão nos ajudar a refletir sobre o assunto, são eles: a) Dona Miúda, viúva que morava sozinha num descampado no final da estrada para o cemitério da Viração e que sempre acompanhava as brincadeiras em nossa casa, foi quem recebeu o espírito. Quando ela se anunciou como Santa Rita Pescadeira, os tambores silenciaram e uma comoção tomou conta dos presentes. Era possível distinguir os questionamentos no meio da audiência, se a encantada de fato existia ou não, e por que até então não havia se manifestado, já que aquele jarê era tão antigo quanto a fazenda (Caxangá) e os desbravadores daquela terra (Água Negra) (Vieira Junior, 2019, p. 69 - grifo nosso). b) Naquele momento, com a roupa rota que vestia, mas com um véu antigo e esgarçado cobrindo sua cabeça, ouvimos sua voz fraca, quase inaudível, entoar uma cantiga, «Santa Rita Pescadeira, cadê meu anzol? Cadê meu anzol? Que fui pescar no mar». A encantada, apesar da idade de dona Miúda, dava giros hábeis na sala, ora como se jogasse uma rede de pesca no meio de todos, ora correndo em evoluções como um rio em fúria. Alguns pareciam estar perplexos e querendo desvendar o mistério da aparição. Outros sorriam, talvez incrédulos, achando que a velha Miúda havia enlouquecido e precisasse dos cuidados de meu pai. (Vieira Junior, 2019, p. 70). Os fragmentos transcritos fazem parte do capitulo 1. Capítulo em que a protagonista e narradora dos fatos é Bibiana, que inclusive, no fragmento ‘a’ em sua descrição, faz um resgate sobre a existência do jarê como algo ancestral, “tão antigo quanto a fazenda (Caxangá) e os desbravadores daquela terra (Água Negra)” (Vieira Junior, 2019, p. 69 - grifo nosso), assim como também descreve o anúncio que é feito por uma outra informante que se anuncia como Santa Rita Pescadeira. No fragmento ‘b’, Santa Rita Pescadeira ganha um volume ainda maior, pois, segundo diz Belonísia, “ouvimos sua voz fraca, quase inaudível, entoar uma cantiga, «Santa Rita Pescadeira, cadê meu anzol? Cadê meu anzol? Que fui pescar no mar»” (JUNIOR, 2019, p. 70). Nos dois fragmentos pode ser percebido, em relação a questão em tela, que alguns praticantes do jarê não conseguem atestar a existência ou não da ‘encantada’, contudo, a escutam com base na prática ancestral do próprio jaré, fazendo jus ao que Candido (2006) destacou sobre adotar um conjunto de uma situação social e suas particularidades, além de ser “justamente neste ponto [que] intervém uma diferença entre a literatura do primitivo e a do civilizado” (Candido, 2006, p. 62 - grifo nosso). Tanto os ‘perplexos’ quanto os ‘talvez, incrédulos’, segundo a narradora, por serem praticantes de tal crença, conhecem os processos dos rituais, assim como a própria Santa Rita Pescadeira, que como nativa de uma outra esfera, atesta-se e, em ‘tese’, também é atestada por quem descreve o seu comportamento e diálogo com ela, sobretudo, no seguinte fragmento: a simples presença de um encantado que eu não conhecia não seria capaz de me intimidar, fosse uma real manifestação do encanto ou da loucura. Os olhos de dona Miúda estavam turvos por trás do véu, cinzas, quase brancos. Talvez fosse a catarata. Mas ela disse algo muito íntimo, que eu não podia explicar, mas sabia bem o que poderia ser. Ela falou sobre um filho, mas era uma frase sem nexo que não recordo com exatidão, algo como «vai The Mythical, Political, and Poetic Crossroads: The Ethnographic Writing of Itamar Vieira Junior in Torto Arado Global Journal of Human-Social Science ( G ) XXV Issue III Version I Year 2025 42 © 2025 Global Journals

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