Global Journal of Human Social Science, G: Linguistics and Education, Volume 25 Issue 3
mestiçagem, a pluralidade e a historicidade dos saberes. Como sugere Clifford Geertz (1989), compreender uma cultura exige mergulhar em seus sistemas simbólicos e em suas formas próprias de dar sentido ao mundo. Nesse sentido, a encruzilhada funciona como um dos nós simbólicos mais potentes, onde se entrelaçam diferentes temporalidades, ontologias e epistemologias. A literatura, nesse contexto, atua como uma forma de mediação social — ela captura, traduz e reconfigura essas experiências, funcionando como uma espécie de “descrição densa” (Geertz, 1989), que não apenas retrata o que se vê, mas também expressa o que se crê, se sente e se vive. Essa capacidade mediadora da literatura torna-a essencial para a transmissão e ressignificação de saberes ancestrais que, muitas vezes, escapam às categorias rígidas do conhecimento científico. Benjamin (1994), por sua vez, já advertia que a narrativa verdadeira é aquela que sabe acolher a experiência em sua totalidade, incluindo o invisível e o subjetivo. A presença de Santa Rita Pescadeira, portanto, não pode ser reduzida a um mero símbolo fictício; ela é uma expressão legítima de um imaginário coletivo e uma ontologia em encruzilhada. Sua voz carrega aquilo que Antonio Candido (2004) identifica como a função social da literatura: tornar legível o invisível, dizer o indizível e dar forma àquilo que, no campo da ciência, frequentemente é silenciado. Nesse sentido, a escrita etnográfica-literária de Itamar Vieira Júnior, especialmente em Torto Arado (2019), exemplifica a potência dessa encruzilhada. Itamar mobiliza uma escrita que é ao mesmo tempo etnográfica e poética, onde a prosa não apenas narra, mas encarna as experiências dos sujeitos do território — sua relação profunda com a terra, os saberes tradicionais, as práticas religiosas e as tensões sociais. Sua narrativa é um convite para uma leitura que ultrapassa a mera descrição, aproximando-se de uma “descrição densa” que integra memória, oralidade e a historicidade dos sujeitos. Ao fazer isso, Itamar Vieira Júnior atua como um mediador social, dando voz a coletivos muitas vezes marginalizados, revelando as contradições de um Brasil rural e afrodescendente e propondo uma epistemologia que dialoga com os modos de ser e conhecer do povo do campo. Sua escrita reafirma a literatura como espaço de encruzilhada — um lugar onde o real e o simbólico se entrelaçam para produzir conhecimento que não se reduz ao acadêmico, mas se abre para a experiência vivida e para as múltiplas temporalidades do tempo. Assim, pensar Santa Rita Pescadeira e a escrita de Itamar Vieira Junior é reconhecer a literatura como um terreno fértil para a produção de conhecimento híbrido e para a revalorização das epistemologias periféricas. É, enfim, um convite para atravessar encruzilhadas e ouvir aquilo que o silêncio científico muitas vezes não permite expressar. VI. C omentários F inais A obra Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, se configura como um poderoso entrelaçamento entre mito, política e poesia, revelando uma escrita etnográfica que ultrapassa a mera descrição para se tornar uma construção simbólica de resistência e memória social. A partir das contribuições dos autores que dialogamos — Lélia Gonzalez, Clifford Geertz, Antonio Candido e Walter Benjamin — é possível compreender a profundidade e o alcance dessa do que chamamos de encruzilhada para a construção de um texto como a obra utilizada para as nossas reflexões nesse trabalho. A encruzilhada, nesse sentido, funciona como uma categoria simbólica que materializa o entrelaça- mento de múltiplas temporalidades, identidades e saberes presentes na narrativa, reforçando a posição do autor como mediador entre a experiência vivida das comunidades do sertão e a representação literária. Ao assumir o papel de etno–tradutor, Itamar Vieira Júnior realiza um gesto de escuta sensível e ética, que transcende a mera descrição para se configurar como uma escrita etnográfica poética e política. Essa escrita permite a emergência de um fenômeno literário diaspórico, no qual os corpos racializados e territorializados ganham voz e subjetividade, revelando as tensões históricas e sociais que marcam o sertão brasileiro. A influência de Lélia Gonzalez é fundamental para compreender a articulação da identidade negra e quilombola na narrativa, enquanto Geertz contribui com o entendimento do texto como sistema simbólico interpretável, que traduz as significações culturais das comunidades. Candido oferece a perspectiva do compromisso social da literatura, destacando a função da narrativa de denunciar injustiças e reexistir o campo como espaço de luta e memória. Nesimi (2019) e Braun (2012) ampliam o diálogo ao considerar as dimensões de território e gênero, enriquecendo a análise das formas de opressão e resistência presentes na obra. Finalmente, a poética da memória e da história crítica de Walter Benjamin inspira a leitura da escrita de Itamar como uma prática que tensiona o passado e o presente, revelando possibilidades de transformação a partir das experiências marginalizadas. Assim, a escrita etnográfica de Torto Arado não apenas descreve o sertão e seus habitantes, mas recria mitos, conflitos e sonhos, inscrevendo-se como uma literatura engajada que mobiliza a potência da palavra para reexistir as vozes silenciadas. Essa encruzilhada mítica, política e poética reforça a importância do romance para a compreensão das dinâmicas culturais e The Mythical, Political, and Poetic Crossroads: The Ethnographic Writing of Itamar Vieira Junior in Torto Arado Global Journal of Human-Social Science ( G ) XXV Issue III Version I Year 2025 45 © 2025 Global Journals uma epistemologia afrocentrada que valoriza a
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